Era 20 de fevereiro de 1974 quando o jornalista Ruy Mesquita recebeu em sua sala no 6º andar do prédio de O Estado de S. Paulo, no Limão, na zona norte, Terezinha de Castro Tavares Coelho. Pouco antes, ele recebera a autorização para visitar o marido, o ex-deputado federal Marco Antônio Tavares Coelho, que estava detido no Destacamento de Operações de Informações, (DOI), do 2º Exército. Ela pôde ver o marido por apenas dez minutos. Foi o suficiente.
Ela contou o que viu e ouviu. Doutor Ruy telefonou de imediato ao ministro da Justiça, Armando Falcão. Na manhã seguinte, o ministro do Exército, Sylvio Frota, foi ao encontro de rotina com o presidente Ernesto Geisel munido de uma nota oficial e de um laudo feito na véspera pelo médico-legista Harry Shibata. Pelo dossiê, o governo não tinha com o que se preocupar: Tavares estava bem nutrido e com a integridade física preservada. Era mais um dos "trabalhos políticos" de Shibata para o DOI.
A nota de Frota foi distribuída à imprensa. Negava tudo o que Terezinha vira e ouvira. O Estadão a publicou ao lado da carta de Terezinha, que continha um apelo: "Matem meu marido, mas não o torturem! Não o aviltem, pelo amor de Deus". Coelho havia sido preso em janeiro na operação que levara os militares a fechar as gráficas do PCB que imprimiam o jornal A Voz Operária. O Estadão, que sempre defendera as liberdades, era contrário à proscrição à qual os comunistas eram submetidos pelo regime. O comunismo não deveria ser derrotado pelo cerceamento da liberdade de imprensa, mas pelo livre debate das ideias.
O episódio envolvendo Terezinha seria apenas o primeiro em que o jornal se veria envolvido no momento em que Geisel e seu chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva, impulsionavam o regime em direção à redemocratização ao mesmo tempo em que se buscava neutralizar a participação dos comunistas na vida pública, tarefa reservada para os órgão de segurança do regime.
Cinquenta anos depois, o jornalista Marco Antonio Rocha, na época, repórter do Jornal Tarde, jornal editado pelo Grupo Estado, conta esse difícil equilíbrio, que o colocaria no olho do furacão durante a última ofensiva dos agentes do DOI contra a imprensa e os jornalistas. Rocha chegara ao JT por sugestão de Robert Appy, um dos pioneiros do jornalismo econômico do País. "O ambiente jornalístico na época era dominado pela Polícia Federal. As pautas, as matérias, tudo você tinha que mandar para a Polícia Federal para ser aprovado."
Rocha havia acabado de ser eleito presidente da Associação dos Jornalistas de Economia do Estado de São Paulo quando Geisel tomou posse como presidente, em março de 1974. Mandou, então, uma carta ao presidente, em nome da associação, pedindo maior liberdade para tratar dos assuntos econômicos, para entrevistar pessoas, enfim, para fazer o trabalho dos jornalistas. "E o que aconteceu? O Humberto Barreto, secretário do Geisel, me telefonou, pedindo que eu fosse a Brasília conversar com ele, que o presidente tinha pedido para ele, Humberto, falar comigo."
Rocha foi a Brasília e lá Barreto o recebeu. "Aí virou para mim, falou: 'Olha, nós conversamos muito sobre essa situação que estava no Brasil e o presidente me deu um recado para eu passar para você. Tudo isso que você tá pleiteando aqui na carta que vocês mandaram, dê um tempo até janeiro do ano que vem. Certo? Não esperem nenhuma providência nesse sentido até janeiro do ano que vem."
Era um dos primeiros sinais concretos da abertura lenta e gradual pregada pelo governo. "O plano dele de liberdade, de abertura, de redemocratização, enfim, ia começar a ser posto em prática a partir do janeiro", contou Rocha, que desejou a Barreto que o presidente tivesse sucesso nessa política.
Em agosto a caça às bruxas desencadeada pelos órgão de segurança passou a ameaçar arquitetos, advogados, professores e jornalistas. "Começou-se a prender tudo quanto era comunista, pseudo-comunista, esquerdista, socialista, o diabo a quatro. Inclusive nós", lembrou Rocha. Foram presos Paulo Markun, Jorge Duque Estrada e acusavam outros jornalistas de ligação com o comunismo, como o diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog.
Na semana em que Herzog seria morto, ele, sua mulher Clarice e Rocha foram a um jantar com um diplomata inglês. Na saída do encontro, o casal deu uma carona a Rocha. "Aí entramos no carro, um Fusca, e eu sentei no banco de trás. A Clarice, antes mesmo de dar a partida, virou para mim e falou: 'Olha, nós precisamos te contar uma coisa'." O casal recebera a informação de que os nomes dele e de Rocha estavam na lista de futuras prisões.
Rocha ouviu e logo pensou que os militares deveriam agir em breve, pois na semana seguinte haveria um grande evento de turismo no Rio, que traria centenas de jornalistas estrangeiros ao País. A ditadura teria de agir antes. "Se eles pretendem fazer alguma perseguição e prisão de jornalistas, eles têm que fazer neste fim de semana, porque na semana que vem, isso vai dar uma repercussão internacional."
Rocha decidiu sair de casa. E de São Paulo. E explicou: "Essa caçada eles vão ter que fazer nesse fim de semana. Aí o Vlado falou: 'Ah, mas eu não posso porque tem a TV Cultura que eu vou trabalhar no sábado'. Eu falei: 'Bom, você dá um jeito, vê lá com a chefia, vê com quem de direito'."
Os três se despediram. Era quarta-feira. Na madrugada de sexta-feira, a mulher do jornalista Rodolfo Konder telefonou para a casa de Rocha. Konder havia sido preso. Prevendo que estaria entre os próximos, apanhou seu Fusca e saiu de casa. Combinou que a mulher levaria os filhos até uma oficina mecânica pela manhã, onde os encontraria antes de partir para a casa de seu sogro, em Guaratinguetá. Foi lá que ele ouviu pelo rádio a notícia da morte de Herzog. "Aí telefonei para o Ruy Mesquita. E falei: "Dr. Ruy, estou aqui em Guaratinguetá, com meu sogro, e estou pensando em ir a Brasília pedir asilo na embaixada da Iugoslávia."
Ruy Mesquita reagiu: "Nada disso, nada de embaixada, venha aqui para o jornal e fique aqui na minha sala. Não vá para sua casa, venha direto para o jornal e fique aqui dentro da minha sala". E Rocha foi. "Eu estava sentando na frente dele e o Ruy liga para o Armando Falcão, que era o ministro da Justiça: 'Ô, Armando, aquele repórter que vocês estão procurando, está aqui no jornal, aqui na minha frente, na minha sala. Então, se vocês querem pegar ele, vem buscar aqui no jornal. Vem pegar aqui dentro do jornal."
Falcão pediu a Ruy Mesquita um tempo para verificar o que estava acontecendo. Meia hora depois, Falcão ligou para o jornal e passou um recado. "Olha, Ruy, é o seguinte: pega aí o seu repórter e, na segunda-feira, leva no comando do 2º Exército e apresenta ele para o general Ednardo D'Avila Mello (então comandante do 2.º Exército)". Naquela noite de sábado, Rocha foi levado por Ruy Mesquita até a casa do acionista do Grupo Estado, onde dormiu. E lá ficou abrigado, no quarto de um dos filhos de Ruy Mesquita, até segunda-feira.
Ruy Mesquita levou o jornalista e sua mulher, Olinda, em companhia do presidente do Sindicato dos Jornalistas, Audálio Dantas, até a sede do 2º Exército. Foram recebidos pelo chefe do Estado-Maior, general Ferreira Marques, que tentou tranquilizar Olinda. "Nós queremos só fazer umas perguntas pro senhor Marco Antônio e, se ele responder tudo direitinho, vai embora para casa, não tem problema nenhum, a senhora pode estar sossegada, certo?" O general buscou entregar um cartão com seu telefone a Olinda. E disse: "Olha, qualquer preocupação, qualquer dúvida, a senhora pode telefonar para mim".
Olinda recusou o cartão. E explicou a razão ao general. "General, eu não vou aceitar o seu cartão porque eu não vou precisar telefonar para o senhor. O senhor nos disse aqui, na frente de todos, que eu não preciso ter preocupação nenhuma, certo? Então, eu não vou precisar telefonar para o senhor. Audálio Dantas lembrou, no entanto, ao general, que os subordinados dele haviam dito a mesma coisa para Herzog quando ele se apresentou para depor. E o colega saíra morto do DOI. Rocha foi ouvido. Não o aviltaram.
"Eu fui sendo interrogado sobre o que acontecia na casa do Vlado, quem participava, e qual era a minha posição pessoal sobre o governo militar. Eu falei: eu sou presidente de uma associação de jornalistas. É evidente que o presidente de uma associação de jornalistas não pode dizer que a situação no Brasil é pacífica e tranquila. Tem que responder com a verdade. E qual é a verdade? A verdade é que há uma ditadura militar." A ditadura recuava. A campanha contra os jornalistas foi encerrada. Uma outra morte iria acontecer no DOI, a do operário Manoel Fiel Filho, antes de o regime afastar o comandante do 2º Exército e encerrar sua caçada.